quinta-feira, 4 de abril de 2013

Colombo






COLOMBO: ENTRE A EXPERIÊNCIA E A IMAGINAÇÃO(1)

O problema não é inventar. É ser inventado.
Carlos Drummond de Andrade

Os escritos de Colombo e sobre Colombo abrem uma porta para a reflexão sobre o significado da experiência e da imaginação nos séculos XV e XVI. Este grande navegador elaborou uma hipótese, a de que a terra era redonda, e a partir dela experimentou navegar para o Ocidente, querendo chegar ao Oriente. Um grande gesto, fruto da imaginação e da experiência, o imortalizou, especialmente quando sua hipótese foi comprovada através de uma viagem de circunavegação(2). Embora a América não fosse as Índias, a Terra é, de fato, redonda. Portanto, Colombo tinha razão ao propor, para todos aqueles que estavam interessados em realizar o comércio com o Oriente, esta viagem.
Este é um lado da história bastante conhecido e que podemos comprovar, fornecendo informações seguras para todos aqueles que desejam analisar a empresa colonial. A montagem de uma economia mundial(3) realizada em grande parte por Portugal e Espanha, financiada por capitais muitas vezes oriundos de outros reinos ou cidades, transformou profundamente as formas de vida na América. Caminhando por esta vertente historiográfica, tenderemos a construir a nossa personagem Colombo como um homem moderno. Mas, teriam sido o reconhecimento e a colonização da América marcados basicamente pelo pensamento moderno ?

Experiência e Imaginação
Todas estas proposições, descritas e interpretadas em seqüência, são verdadeiras, e representam, de fato, parte do que ocorreu. Mas, ao mesmo tempo, embora sejam colocações claras e objetivas, não dão conta nem da personagem nem da natureza das transformações ocorridas tanto na América como na Europa. Análises marcadas pelo pensamento moderno excluem partes da história, não aquelas partes que se referem às experiências comprovadas mas, aquelas outras que compõem o imaginário cristão e pagão que foram o instrumento básico no convívio entre os indígenas e os europeus na Idade Média. A comunicação entre indígenas e europeus, realizada através de gestos, língua, ou ainda, da fabricação de objetos de cultura, cristalizaram o universo cultural americano, à medida em que ambos eram fragmentados.
Nesse sentido, deveremos percorrer tanto o universo marcado pela imaginação quanto aquele outro que sábios e filósofos da época denominaram, as razões das descobertas. Assim, procuraremos analisar as formas de convívio interculturais estabelecidas na América. Ao abandonarmos, portanto, a convenção da veracidade, como único objeto de estudo do historiador, poderemos fundir relato histórico e relato literário. Tomemos um exemplo, para esclarecer esta proposta:
Dom Hernando se refere com muita clareza em seu livro, a Vida Del Almirante, às razões que moveram Colombo crer que poderia descobrir as Índias:
Viniendo, pues, a decir las razones que movieron al Almirante al descubrimiento de las Índias, diré que fueron tres a saber: los fundamentos naturales, la autoridad de los escritores y los indicios de los navegantes. En cuanto a lo primeiro, que es razón natural, digo que él consideró que, como toda el agua y la tierra del mundo constituyan una esfera, era posible rodearse de Oriente a Occidente, andando por ella los hombres, hasta estar pies con pies los unos con los otros, en cualquiera parte que en opósito se hallasen. En segundo lugar y conoció por autoridad de autores aprobados que gran parte de esta esfera había sido navegada y que no quedaba, para ser toda descubierta, sino aquel espacio que había desde el fin oriental de la índia, de que Ptolomeu y Marino tuvieron noticia, hasta que, prosiguiendo la via del Oriente, tornasen por nuestro Occidente a las islas de Cabo Verde y de los Azores, que era la tierra más occidental que entonces estaba descobierta. En tercer lugar, entendía que aquel dicho espacio que había entre el fin oriental, sabido por Marino, y las dichas islas de Cabo Verde, no podía ser más que la tercera parte del círculo mayor de la esfera, pues que ya el dito Marino había descrito por el Oriente quince horas o partes de veinticuarto que hay en la redondez del mundo, y hasta llegar a las dichas islas de Cabo Verde no faltaba cuasi ocho, porque aún el dicho Marino no comenzó su descripción tan al Poniente.(4)
A utilização das palavras razão e crença é extremamente significativa para se compreender a personagem, Colombo, e sua época. Indicam a presença do vínculo entre o pensamento medieval e o pensamento renascentista. Por um lado, Colombo é levado a observar a realidade e, a partir dessas observações, chegar a determinadas conclusões. Por outro lado, Colombo crê em algumas profecias e preserva, de maneira admirável, os ideais da cavalaria que o distanciavam da realidade e da experiência da qual ele era o artífice. Colombo, ao mesmo tempo que descobre ser a terra redonda, procura encontrar o caminho do Paraíso terrestre. Este paradoxo (realidade e sonho) presente em Colombo será elemento constitutivo das formas de apreensão do universo indígena, parte também integrante da nossa ancestralidade cultural.

Do imaginário à realidade
Como fundir o relato histórico com o relato literário ?
Talvez a melhor maneira para se trabalhar o documento histórico seja analisar as formas de narração presentes nos documentos de um determinado período histórico, sem preocupação em separar, a priori, o que poderia ser ciência do que poderia ser imaginação.
Evidentemente, ao aceitarmos esta proposição estamos descartando aqueles estudos que concebem a história como disciplina mais próxima das ciências naturais do que da literatura, opondo, portanto, história e literatura.
Ao analisar relatos históricos, partiremos do pressuposto, tão bem fundamentado por Walter D. Mignolo(5) para quem: "veracidad y ficcionalidad se conciben, en mi sistema conceptual, como convenciones que regulan el empleo del lenguaje, literatura e historia se conciben como normas que regulan el empleo del lenguaje en una práctica discursiva disciplinaria".
Portanto, o nosso enfoque, ao analisar um documento, muito se parece com aquele que preside a análise literária. Veracidade e imaginação são elementos constitutivos do texto histórico. A presença alternada, combinada e espelhada torna muitas vezes difícil, ao historiador, separar o fato propriamente dito, do que é imaginação, ou o que se transformou de imaginação em fato documentado (descobrimento da América), ou ainda, o que foi um fato distorcido, apenas um pouquinho, pelo olhar do narrador, daquele que foi muito distorcido.

O diário de Colombo
Existem polêmicas notáveis quanto à autenticidade dos diários de Colombo e também com relação à Vida del Almirante escrita por seu filho, Hernando. Henry Harrisse (1830-1910), por exemplo, chegou mesmo a sugerir um autor como o responsável pelos escritos: o humanista Hérnan Pérez de Oliva(6). Mascarenhas Barreto(7) publicou em 1988 um livro no qual Cristóvão Colombo ganha a nacionalidade portuguesa e é apresentado como agente secreto de Dom João II. Estas polêmicas demonstram, antes de mais nada, um gosto pelo suspense, pelo desejo de decifrar o indecifrável, de descobrir indícios(8) em meio a filigranas só perceptíveis a historiadores-detetives que atuam munidos de lupa. Nos casos, em que muitas vezes se torna impossível descobrir a verdade, e que são os mais freqüentes, o mais interessante é analisar a relação do detetive-historiador com o documento. Afinal, quando surgem esses cronistas e historiadores preocupados em reconstruir a verdade e qual o caminho que seguem para alcançá-la ? Teria Colombo intenção em ser objetivo? Saberia o homem medieval enfrentar o seu destino, a fortuna, armado da razão? Ou preferiria experimentar as suas hipóteses armado da fé ?
Um documento histórico, a Vida del Almirante Don Cristobal Colón, escrita por seu filho, Don Hernando, ainda que tenha sido escrito por outro Hernán Pérez de Oliva, ou ainda outro, cujo nome desconhecemos, tal documento, ou tais documentos, estão de acordo com outros escritos do Almirante. Esses antigos manuscritos trazem as marcas da mentalidade medieval e renascentista, expressa em um modo de ser. Ou seja, a forma da narração de Colombo e de seus contemporâneos nos permite reconhecer, concomitantemente, a convenção da veracidade e da fantasia ou imaginação. Ou seja, as verdades e sonhos produzidos por Colombo ou por seu filho, ou ainda, por outros companheiros, fazem parte, igualmente, do mesmo sistema conceitual. Empregam convenções em nível da linguagem que nos abrem as portas tanto para a compreensão histórica de uma época quanto para a fruição literária de um texto de época.
O Diário de Colombo e a Vida del Almirante nos mostram como a América foi inventada antes de ser descoberta. A invenção, palavra escolhida por O`Gorman(9) para contrapor-se à criação (que supõe produzir algo "ex nihilo, portanto com sentido apenas dentro do âmbito da fé cristã"), carrega no seu bojo uma reflexão que ultrapassa em muito o descobrimento propriamente geográfico da América.

A américa através do imaginário europeu
A descoberta da América, realizada por Colombo, é um tema que deu origem a muita polêmica. A mais conhecida e difundida nestes anos que precedem as comemorações dizem respeito ao fato de que a América não necessitava dos europeus para existir. E, nesse sentido, nada se tem a comemorar. A América encontrada, achada por Colombo, em meio a "mares nunca dantes navegados"(10), incorporou-se ao imaginário europeu com uma série de atributos que já haviam sido delegados a ela muito antes de ser descoberta. Ou seja, a América já fazia parte do imaginário europeu, representando para Colombo apenas a comprovação de tudo o que havia sido produzido pela sua imaginação e pela imaginação de seus contemporâneos.
Nesse sentido, todos os documentos que se cruzam em torno do nome Cristóvão Colombo representam a possibilidade de navegarmos em um universo plural do qual fazem parte, igualmente, os sonhos irrealizados de Colombo e as façanhas que ele desempenhou, e que, por contingências histórico-institucionais, mantiveram-se na memória por terem sido registradas por escrito.
A América surgiu primeiro pelo gosto, pelo prazer de narrar, de expor os fatos com sutis matizes, capazes de restaurar o imaginário do interlocutor, despertando nele o interesse pela aventura, pelo maravilhoso, pelo conhecimento do desconhecido.
A primeira roupa com que a América se travestiu, aos olhos do europeu, foi dada por Colombo através da palavra Índias. Colombo pensou ter chegado às Índias, e, portanto, tudo o que viu correspondia a um indício capaz de comprovar sua hipótese. A. Gerbi nos lembra como Colombo se esquiva de analisar a flora americana, pois não podia identificá-la com a flora das Índias ou das Molucas. Sem se preocupar com as diferenças, Colombo se utiliza deste mesmo espaço criado por elas (pelas diferenças) para se lançar à recriação de tudo aquilo que ele pretendia encontrar. O seu imaginário era regido por inúmeras informações, trazidas por viajantes (como Marco Polo, por exemplo) que gostavam de contar suas façanhas, sem que os interlocutores estivessem interessados em pedir provas. O prazer de produzir uma narração de acordo com as suas expectativas, construídas bem antes da viagem, era superior à sua capacidade de descrever um continente desconhecido. Nesse sentido, Colombo vai estruturar em seu diário não apenas o seu sonho mas, principalmente, um sonho italiano, um sonho europeu intercalado de informações retiradas de cartas elaboradas por navegadores experientes e observações astronômicas recolhidas em viagens. A realidade e a fantasia se entrelaçam. A. Gerbi nos fala de forma muito sensível sobre os sentimentos de Colombo capazes de demarcar a natureza com a sua sensação:
Frente a tanta exuberancia, Colón se nos muestra dominado por tres sentimientos: entusiasmo por la novedad de la flora antillana, admiración por su excepcional hermosura, y angustia de no estar en posibilidad (por escasez de tiempo y de conocimientos botánicos) de apreciar sus virtudes medicinales y su valor nutritivo. En el plano cognoscitivo, la natureza americana es diversa y sorprendente, de otra forma: "disforme". En el plano estético-hedonista, es hermosa y placentera, eufórica. En el plano prático, tiene que ser utilísima y buenísima, pero esto Colón no lo sabe. Antes que nada, tiene prisa de encontrar oro: "puede haber muchas cosas que yo no sé, porque no me quiero detener por calar y andar muchas islas para fallar oro".(11)
Na verdade são alguns sentimentos e percepções poéticas, construídas a partir da natureza européia, que aproximam os dois continentes. A incapacidade de Colombo de ver a América corresponde, ao mesmo tempo, a uma grande capacidade de criar afinidades(12). Para Colombo, os objetos são semelhantes ou diferentes "dos nossos", ou seja, sempre são organizados de forma a aproximar cultura européia da cultura indígena, criando uma unidade capaz de abranger todas as variáveis por ele observadas.
O compromisso de Colombo com a fé cristã ativa sua imaginação, obrigando-o a interpretações adequadas à espiritualidade cristã. E, ao fazê-lo, Colombo inicia um longo trajeto de visualização da Europa na América. Colombo vê mais com a imaginação do que com a vista. E, quando se encanta com uma natureza que escapa aos modelos já conhecidos, ele mesmo diz não saber como expressar-se:
Es este país, Príncipes Serenísimos, en tanta maravilha hermoso, que soprepuja a los dem s en amenidad y belleza, como el día en luz a la noche. Por lo cual solía yo decir a mi gente muchas veces, que por mucho que me esforzase en dar entera relación de él a Vuestras Altezas, no podría mi lengua decir toda la verdad, ni mi mano describirla. Y en verdad, quedé tan asombrado viendo tanta hermosura, que no sé cómo expressarme.(13)
Este é um momento excepcional no texto, quando o narrador, por não conseguir comparar, prefere não se expressar. O mesmo não ocorre quando Colombo necessita explicar aos indígenas quem eram os Reis Católicos e a quem deveriam prestar serviços. Os contatos parecem sempre resultar em um bom entendimento entre as partes. Ou seja, a comunicação se realiza através de gestos, palavras ininteligíveis, um verdadeiro ritual que se transforma em forma de comunicação. Na perspectiva do europeu, a prosa corre solta, independentemente do entendimento do indígena.

Da imaginação à aproximação
A narrativa, assim constituída, supondo ser muitas vezes desnecessária a presença do tradutor, é um elemento de aproximação. Colombo, como seus contemporâneos, ao dar um sentido visual a tudo o que narra e escreve e ao apresentar, à sua moda, a América aos europeus, mantém o mesmo eixo narrativo e a mesma forma com que sabia apreender os objetos na Europa.
Assim, ele criou uma América, ao mesmo tempo, rica e inverossímil, que agradava ao leitor acostumado ao luxo e à riqueza presentes nas descrições de um Oriente exótico. Essas características típicas de sua narração fazem parte tanto do romance de cavalaria como das tapeçarias e pinturas do século XIV. Cervantes, por exemplo, trata em seu livro Dom Quixote de la Mancha da relação entre o sonho e a realidade, e seu herói, que às vezes nos faz lembrar Colombo é um grande leitor dos romances de cavalaria(14).
Colombo guarda a mesma ambigüidade sem dela rir. Quanto à pintura, se quisermos citar um exemplo que nos lembra o gosto pelo trato constante com o inverossímil, basta lembrar a obra de Bernardo Martorel, São Jorge matando o Dragão. Um dragão que dificilmente meteria medo, mas cuja existência ajudava a imaginação a florescer. O relato de Colombo em seu diário, de 9 de janeiro de 1493, nos faz ver a importância do inverossímil para o re-conhecimento do mar oceano:
Nessa terra toda há muitas tartarugas, que os marinheiros capturaram em Monte Cristi, quando vinham desovar em terra, e eram enormes, feito grandes escudos de madeira. Ontem, quando o Almirante ia ao Rio del Oro, diz que viu três sereias que saltaram bem alto, acima do mar, mas não eram tão bonitas como pintam, e que, de certo modo, tinham cara de homem.(15)
A narrativa de viagem de Colombo compõe-se através de uma rede de inter-relações, na qual o conceito organizador, contido na memória do narrador, define o espaço no qual a América passa a fazer parte da cultura européia. Observem:
Asimismo digo que también debemos estimar mucho su honestidad y vergüenza, porque si al entrar en la nave ocurría que les quitasen alguno de los panos con que cubrían sus vergüenzas, en seguida el indio, para cubrirlas, ponía delante las manos y no las levantaba nunca: y las mujeres se tapaban la cara y el cuerpo, como tenemos dicho que hacen las moras en Granada. Esto movió al Almirante a tratarlos bien, a restituirles la canoa, y a darles algunas cosas a cambio de aquellas que los nuestros les habían tomado para muestra. Y no retuvo de ellos consigo sino a un viejo, llamado Yumbé, el cual parecía de mayor autoridad y prudencia, para informarse de las cosas de la tierra, y para que animase a los otros a platicar con los cristanos; lo que hizo pronta y fielmente todo el tiempo que anduvimos por donde se entendía su lengua. Por lo que en premio y recompensa de esto, cuando llegamos a donde no podía ser entendido, el Almirante le dió algumas cosas y lo envió a su tierra muy contento. Esto sucedió antes de llegar al cabo de Gracias a Dios, en la costa de la Oreja.(16)
Este texto nos deixa antever uma trama que encaminha o receptor da mensagem a uma determinada percepção dos objetos. A disposição das palavras honestidade e vergonha, autoridade e prudência, ou ainda, prêmio e recompensa estrutura o conteúdo da informação. Ou, melhor dizendo, estas palavras, retiradas muitas vezes da épica, conformaram o reconhecimento da América através de seu protagonista: o narrador.
Palavras como honestidade ou autoridade definem os contornos da narração, sendo estas palavras, mais que os verbos, responsáveis pelo significado do texto. A harmonia criada pelos substantivos e adjetivos ao se descrever a viagem aproxima os dois continentes, deixando, por vezes, transparecer pedaços de informações que dizem respeito à cultura indígena. Colombo constrói sua narrativa da mesma forma que o construtor renascentista dispunha pedras em camadas, compondo uma parede sem esconder os desenhos. A conquista e a destruição da América estão presente na narrativa (não se omite nem se disfarça a violência), ao mesmo tempo em que ele transforma em obediência e quietude a ação do indígena, comprovando-se, assim, a superioridade do cristianismo.
Con la prisión de estos y con la victoria obtenida, sucedieron las cosas de los cristianos tan prósperamente, que no siendo entonces más de seiscientos treinta, y la maior parte enfermos, y muchas mujeres y muchachos, en el espacio de un año que el Almirante recorrió la isla, sin tener que volver a desenvainar la espada, la redujo a tal obediencia y quietud que todos prometieron pagar tributo a los Reyes Católicos cada tres meses, a saber: de los que habitan en Cibao, donde estaban las minas de oro, pagaría toda persona mayor de catorce anos un cascabel grande lleno de oro en polvo; y todos los demás, veinticinco libras de algodón cada uno.(17)
Colombo é o avalista da paz organizada e esperada por ele sob a égide do cristianismo; o organizador de um governo marcado pela vontade de Deus e pela sabedoria dos Reis Católicos; introdutor na América da figura, tão poderosa quanto imaginária, dos Reis Católicos, personificação de um princípio de poder; virtuoso e cortês, ele é capaz de deixar inscrito no seu diário, não o que ele viu na América, mas o seu ideal, do qual pretendia ser porta-voz.
Os biógrafos e companheiros de Colombo na descrição da América interpretam o que vêem invocando um universo mental marcado pelo pensamento cristão. Ao cronista cabe a missão primeira de integrar a história da América na obra de criação(18). Colombo inicia com seu diário um longo trajeto, que será percorrido por inúmeros cronistas, procurando ordenar sua explicação de forma a que cada palavra encontrasse suas correspondências. A América, o Novo Mundo, é exótica, apenas, na sua aparência, pois faz parte da grande obra de criação, contendo, em essência, a mesma verdade contida no relato bíblico.

Das analogias às afinidades
Colombo é o primeiro artesão a enunciar informações colhidas além-mar de acordo com elementos do imaginário europeu, aproximando, pela narrativa, povos que até então estavam isolados geográfica e culturalmente. A aproximação muitas vezes deixava visível, num primeiro momento, a diferença, mas, logo a seguir, por analogia, a aproximação realizava-se através de afinidades. Resgatavam-se antigas sobrevivências pagãs presentes na história européia, que passavam a ser referenciais para a compreensão do que se supunha ser a nossa história indígena.
A pena, a tinta e o papel nos indicam de que forma é feita a aproximação entre dois acervos culturais através de uma história provavelmente narrada por Colombo.
Y al día siguiente, bajando a tierra el Adelantado para tener información de aquellas gentes, se acercaron dos de los principales a la barca donde él estaba, y tomándolo por los brazos en medio de ellos, lo sentaron en la hierba de la orilla; y preguntandoles el Aldelantado algunas cosas, mandó a los escribanos de la nave que anotasen lo que respondían. Pero viendo el papel y la pluma se alborotaron de tal forma que la mayor parte de ellos se dieron a la fuga. Lo cual, según se pudo conjeturar, fué por el miedo que tuvieron a ser hechizados con palavras o signos aunque en realidad eran ellos quienes nos parecían a nosostros grandes hechiceros, y con razón.(19)
Qual "razão" estariam os europeus invocando ?
A narrativa, embora separe as personagens da cena, o indígena do europeu, inaugura um diálogo que pressupõe elementos semelhantes na aparência. A aparência é o espaço de comunicação que inaugura a possibilidade de convívio intercultural. Colombo não sente necessidade de compreender a língua indígena, nem anseia por um tradutor, o que lhe favorece a comunicação. A aproximação se realiza por uma suposição prévia de que ele conhecia o outro. Para o europeu, o desconhecido sempre sugere magia, um universo marcado pela idolatria, sendo estes os elementos de distinção entre bárbaros e civilizados.
A conjectura de que os indígenas teriam fugido com medo de serem encantados com pena, tinta, papel e escrita era igualmente proporcional ao medo que eles sentiam ao observar o indígena. Contudo, jamais somos informados da presença de algum objeto indígena que pudesse despertar temor confesso, por escrito, entre os europeus. A possibilidade do sortilégio, a princípio, se apresenta como elemento de correlação entre ambos para logo a seguir hierarquizar as personagens em cena. O espanto, o medo e a fuga caracterizam a conduta do indígena, figurante na cena protagonizada pelo europeu. Este não se espanta com a cultura do outro(20), porque a seus olhos, ela não tem valor próprio, diverso do seu, portanto o indígena não é, nem nunca foi, um desconhecido. E, nesse sentido, a razão, assim denominada no texto, é depositada nas mãos dos cristãos.
Essas observações poderiam, num primeiro momento, nos fazer pensar que uma parte da "verdade histórica" está sendo encoberta nesses relatos, constituídos dentro da perspectiva do europeu. Este tipo de formulação deu origem a uma historiografia que contrapôs a "visão do vencedor" à "visão do vencido".
Colombo e seus contemporâneos não estavam preocupados, ao escrever diários, cartas ou crônicas, em reproduzir, apenas, o que seus olhos poderiam ver. Estavam preocupados em simbolizar algum conceito moral ou doutrinal, tendo como suporte um universo desconhecido. O que era desconhecido representava um desafio à interpretação que já estava elaborada desde há muito.
É importante observar que a nossa personagem sabe decompor os elementos para, em seguida, reorganizá-los dentro da sua óptica. Colombo não elabora uma "distinção histórica" das culturas em questão, ele apenas separa aqueles elementos que sabe como agregar. Seu texto não envolve hostilidade, embora nos informe sobre a violência. A sua superficialidade ao descrever fauna, flora e homem corresponde ao desejo de harmonizar através da aparência.
Freqüentemente a historiografia busca caracterizar, nesses primeiros documentos que contam a história da América, a destruição dos indígenas e de sua cultura. Isto é parte da história. A história da América, em seu período colonial, é marcada pela presença de uma população com ascendência índia, espanhola e negra. Os primeiros cronistas das Índias, ao narrarem a conquista, estão profundamente marcados por uma epopéia heróica medieval. Nela a aproximação com a realidade não constituía a questão mais importante. O elemento central destas narrativas era tornar a história vivida por Colombo expressão do ideal cavalheiresco, e este processo envolve a montagem de um caráter fictício para o herói e para as ações por ele desenvolvidas.
A beleza da personagem, Colombo, constituiu-se à medida que conseguimos percebê-lo com um homem afastado do real. E. Auerbach definiu com precisão o que a cultura cortesã deixou de herança na Europa:
[...] o nobre, o grande e o importante nada têm a procurar na realidade comum - uma convicção muito mais patética e arrebatadora do que as antigas formas de afastamento do real tais como as oferece a ética estóica.(21)
Este é Colombo, um homem a quem nós, como historiadores, não devemos cobrar um compromisso com a verdade ou com a destruição. Esses fatos e a violência no contato intercultural são apenas parte da verdade. As relações interculturais freqüentemente são conflitivas. Ao constituir um universo, marcado também pelo seu imaginário, Colombo aproxima as personagens com quem se confronta, tornando-se o primeiro artesão das relações interculturais na América.
Colombo as aproxima ao tornar sublime a história que vive. Ele não procura uma motivação prática, caminha em direção inversa à experiência ao procurar o rio que emana do Paraíso. Diz ele:
Volto ao meu assunto da terra de Gracia, do rio e do lago que ali encontrei, tão grande que seria mais justo considerá-lo mar, pois lago é lugar de água e, sendo grande, se diz "mar", como se chamou ao mar da Galiléia e ao mar Morto, e eu afirmo que este rio emana do Paraíso terrestre e de terra infinita, pois do Austro até agora não se teve notícia, mas a minha convicção é bem forte de que ali, onde indiquei, fica o Paraíso terrestre, e em meus ditos e afirmações me apóio nas razões e autoridades supracitadas.(22)
Quando lemos a Bíblia (Gênesis, cap.2, vers.8 a 20), reconhecemos o espaço que originou as reflexões descritivas de Colombo. É interessante retomar o texto original, até mesmo pelo tônus da narração:
Ora, o Senhor Deus tinha plantado um jardim no Éden, do lado do Oriente, e colocou nele o homem que havia criado. O Senhor Deus fez brotar da terra toda sorte de árvores, de aspecto agradável, e de frutos bons para comer; e a árvore da vida no meio do jardim, e a árvore da ciência do bem e do mal. Um rio saía do Éden para regar o jardim, e dividia-se em seguida em quatro braços. O nome do primeiro é Fison, e é aquele que contorna toda a região de Evilat, onde se encontra o ouro. (O ouro desta região é puro; encontra-se ali tambem o bdélio e a pedra ônix). O nome do segundo rio é Geon, e é aquele que contorna toda a região de Cusch. O nome do terceiro rio é Tigre, que corre ao Oriente da Assíria. O quarto rio é o Eufrates. [...]
O Senhor Deus disse: "Não é bom que o homem esteja só; vou dar-lhe uma ajuda que lhe seja adequada". Tendo, pois, o Senhor Deus formado a terra, todos os animais dos campos, e todas as aves dos céus, levou-os ao homem, para ver como ele os havia de chamar; e todo o nome que o homem pôs aos animais vivos, esse é o seu verdadeiro nome. O homem pôs nomes em todos os animais, a todas as aves dos céus e a todos os animais dos campos; mas não se achava para ele uma ajuda que lhe fosse adequada.
Ao considerar-se apto para esta missão, encontrar o caminho do Paraíso, Colombo concebe-se eleito para uma tarefa grandiosa, que, apesar de alguns percalços, resultará na formação de uma comunidade ordenada.
Essa comunidade, através de um convívio cotidiano intercultural, impôs ao indígena a criação de uma unidade lingüística. A implementação da língua espanhola na América não representou o desaparecimento das línguas indígenas. Mas a criação desta língua comum, o espanhol, representou capacidade de aproximação, de incorporação do acervo cultural europeu em toda a América. Apesar de tanta violência, criaram-se formas de convívio sem que se tornasse necessária a negação da cultura européia implementada e difundida na América. O primeiro artífice desse nosso patrimônio, dessa nossa capacidade de convívio intercultural, foi Cristóvão Colombo, ao transformar um mundo desconhecido em um universo de semelhanças.



1) Conferência realizada na inauguração da mostra "Cristoforo Colombo, il Genovese" em 20 de agosto de 1990, no Departamento de História da Universidade de São Paulo.
2) Convém lembrar os relatos de Antonio Pigafetta. Primer Viaje Alredor del Globo. Barcelona, Ediciones Orbis, 1986. A obra original foi escrita em italiano e teve sua primeira edição em 1800 com o título: Primo Viaggio in torno al globo terracqueo. Este livro não é o diário de viagem mas uma correspondência elaborada a pedido de Clemente VII, da qual faz parte informações sobre a primeira viagem de circunavegação. Fernão de Magalhães foi um de seus artífices cuja meta maior era fazer investigações sobre o cálculo de longitudes. A viagem durou três anos contando com a participação de duzentos e trinta e sete homens distribuídos em cinco embarcações, dos quais sobreviveram apenas dezoito em um navio. Fernão de Magalhães perde a vida nesta viagem.
3) Vitorino Magalhães Godinho. Os descobrimentos e a economia mundial. Lisboa, Editorial Presença, 1981.
4) O capítulo VI caracteriza bem o lado moderno do pensamento de Colombo construído pela narrativa de seu filho, don Hernando Colón. Vida Del Almirante Don Cristóbal Colón. México, Fondo de Cultura Económica, 1984, p.42. O título do capítulo é bastante sugestivo: "De la Rázon Principal que Movió al Almirante a Creer que Podía Descubrir las Indias."
5) Considero os trabalhos de Walter D. Mignolo extremamente esclarecedores das questões conceituais que atordoam os historiadores que navegam em meio à convenção da veracidade. Vale a pena ressaltar o artigo, "Dominios Borrosos y Dominios Teóricos: Ensayo de Elucidación Conceitual", in Filología, Buenos Aires, Faculdad de Filosofia y Letras, ano XX, 1985, pp. 21-40.
6) Hernando Colón. Op. cit., p. 15-16.
7) Mascarenhas Barreto, O português Cristóvão Colombo. Agente secreto do rei Dom João II. Lisboa, Referendo, 1988.
8) Carlo Ginzburg. Mitos, Emblemas e Sinais: morfologia e história. São Paulo, Companhia das Letras, 1989. O capítulo, "Sinais: Raízes de um Paradigma Indiciário", aborda uma série de questões que nos levam a questionar a oposição "racionalismo" e "irracionalismo", a qual muitas vezes nos impede de penetrar, como homens modernos que somos, no universo da narrativa histórica.
9) Edmundo O´Gorman. Op. cit., p.9.
10) Utilizo como metáfora a frase bastante conhecida de Luís de Camões, posto que os "mares nunca dantes navegados" em seu sentido original referem-se ao Oceano Índico. Os Lusíadas. São Paulo, Abril Cultural, 1979, p. 29. Canto Primeiro: "As armas e os barões assinalados,/ Que da ocidental praia lusitana,/ Por mares nunca dantes navegados,/ Passaram ainda além da Taprobana,/ E em perigos e guerras esforçados/ Mais do que prometia a força humana,/ E entre gente remota edificaram/ Novo Reino, que tanto sublimaram;"
11) Antonello Gerbi. La Naturaleza de las Indias Nuevas. De Cristóbal Colón a Gonzalo Fernández de Oviedo. México, Fondo de Cultura Económica, 1978, p.29 (Grifo nosso).
12) Michel Foucault. As Palavras e as Coisas. São Paulo, Martins Fontes, 1987, p.33-58. Diz o Autor ao analisar a mentalidade até o final do século XVI: "Até o final do século XVI, a semelhança desempenhou um papel construtor no saber da cultura ocidental. Foi ela que, em grande parte, conduziu a exegese e a interpretação dos textos; foi ela que organizou o jogo dos símbolos, permitiu o conhecimento das coisas visíveis e invisíveis, guiou a arte de representá-las. O mundo enrolava-se sobre si mesmo: a terra repetindo o céu, os rostos mirando-se nas estrelas e a erva envolvendo nas suas hastes os segredos que serviam ao homem. A pintura imitava o espaço. E a representação - fosse ela festa ou saber - se dava como repetição: teatro da vida ou espelho do mundo, tal era o título de toda linguagem, sua maneira de anunciar-se e de formular seu direito de falar." (p.33.)
13) Hernando Colón. Op. cit., p.105.
14) Eric Auerbach. Op. cit., p.292-314. Ao escrever, sobre a doidice de Quixote, Auerbach nos mostra o sentido da ironia romântica e de uma loucura sábia. A beleza do texto de Cervantes ao conjugar ironia, loucura e sabedoria nos auxilia no sentido de compreender melhor Colombo sem querer privilegiar a parte moderna de seu perfil de navegador.
15) Cristóvão Colombo. Diários da descoberta da América. Porto Alegre, L&PM Ed., 1984, p.87.
16) Hernando Colón. Op. cit., p.275 (grifo nosso).
17) Idem, p.182-183 (grifo nosso).
18) Joseph de Acosta. Historia natural y moral de las Indias. En que se tratan de las Cosas Notables del Cielo, metales, plantas y animales dellas y los ritos y ceremonias, leyes y gobierno de los indios. México, Fondo de Cultura Económica, 1979. É interessante observar no capítulo I, do livro I, "De la Opinión que Algunos Autores Tuvieron que el Cielo no se Extendía al Nuevo Mundo", a importância para o pensamento cristão, concluir, através, da experiência, que "en este gran edificio del mundo, todo el cielo estará a una parte encima, y toda la tierra a otra diferente debajo"(p.15), porque, sendo o céu um só, os filósofos, em nome da Divina Sabedoria, saberão glorificar, em conjunto, toda a obra da criação.
19) Hernando Colón. Op. cit., p.281 (grifo nosso).
20) Freqüentemente, encontramos a citação retirada das cartas de Cortés, em que ele admira Tenochtitlán. Contudo, este momento representa uma exceção tanto nas cartas de Cortés quanto em outros documentos da época. Como nos lembra Manuel Alcalá ao nos introduzir no Corpus Cortesianum "a admiração e o amor pela nova terra, que é a tônica das duas primeiras cartas, deixa (a partir da terceira) o lugar para o ódio e a violência." A cultura indígena não pode ser apreciada porque representa a barbárie, o contraponto à civilização. Laura de Mello e Souza, em seu livro O Diabo e Terra de Santa Cruz. São Paulo, Companhia das Letras, 1986, nos lembra o intrincado processo de demonização da cultura indígena.
21) Eric Auerbach. Op. cit., p.119.
22) Cristóvão Colombo. Op. cit., p.147.

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