quinta-feira, 4 de abril de 2013

Um país misterioso chamado Brasil



Um paraíso misterioso chamado Brasil

Os viajantes europeus que estiveram no país a partir do século XVI o retrataram como um éden reencontrado, repleto de criaturas e paisagens fantásticas


Mônica Cristina Corrêa
 
Coleção particular
Uma floresta exuberante habita
da por populações exóticas: eis o estereótipo da América do Sul construído pelos cronistas do Velho Mundo
Depois de ter revolucionado o Velho Mundo há mais de cinco séculos, a descoberta da América, em particular da América do Sul, continua a exercer certo fascínio sobre a Europa. Seus habitantes parecem não ter isolado o continente sul-americano da visão de uma floresta exuberante, da composição multirracial da população e do suposto componente erótico. As visões exóticas do Novo Mundo persistem, alimentadas por uma grande dose de imaginação.

Marcando a diferença entre uma Europa já civilizada e uma terra virgem e verde, os viajantes que passaram pela América a partir do século XVI produziram uma literatura que refletiu imagens de um mundo novo de fato. Com o tempo, alguns aspectos dessas descrições se tornaram estereótipos e até mitos.

Nos relatos dos europeus, o Brasil sempre apareceu como um misto de paraíso e terra repleta de perigos, onde a selva (e a selvageria) se sobrepõe à realidade urbana; onde praias paradisíacas e animais estranhos convivem em uma paisagem marcada pela abundância, pela fertilidade e pelo erotismo desprendido. Antes eram os relatos misturando ficcional e narrativa documental e os livros de viagem ilustrados com imagens (muitas vezes irreais) de animais bizarros, florestas infindas e estranhos habitantes nus. Hoje, são os panfletos turísticos, as imagens televisivas, as reportagens e fotografias que difundem cenas de uma mistura de paraíso e “terra incógnita”, cheia de emboscadas e perigos.

Desde os primórdios, a concepção europeia do novo continente teve duas facetas, completamente opostas: por um lado, a terra era vista quase sempre como um éden; por outro, o homem aparecia demonizado. São, pois, intermináveis os exemplos de exaltação da abundância de vegetação, da quantidade de espécies – seja da fauna ou da flora – da exuberância e até da longevidade (relatos mencionam que os índios chegavam a 180 anos!) proporcionada pelo clima esplêndido do Brasil. Com o mesmo peso, registrava-se o espanto diante dos ritos canibalescos do selvagem.

É curioso que, para os europeus, os nativos eram um povo sem “fé, sem rei e sem lei”; daí concluírem que a língua tupi não tinha os fonemas “f”, “r” nem “l”. Conforme afirma a historiadora Laura de Mello e Souza em seu livro O diabo e a terra de Santa Cruz, “Colombo inaugurou assim o movimento duplo que perduraria por séculos em terras americanas: a edenização da natureza, a desconsideração dos homens – bárbaros, animais, demônios”.
Departamento de História da Marinha, Vincennes
Enquanto a terra era vista quase sempre como um éden, os homens eram considerados primitivos e selvagens, com hábitos que assustavam os viajantes
Nesse sentido, uma nação em especial colaborou para a formação de uma imagem do Brasil entre o idílico e o perigoso: a França. Como seus navegadores não colonizaram estas terras, apesar de duas tentativas frustradas (Rio de Janeiro em 1555 e São Luís do Maranhão em 1612), os franceses mantiveram outro tipo de relação com o país. O Brasil passou a ser idealizado na mentalidade desse povo, e a apropriação não se deu no plano material, mas intelectual.

A França foi o país que “colonizou” culturalmente a América Latina, influenciando-a em todas as áreas do saber, em especial nas ciências humanas. No sentido contrário, o Brasil imaginário apresentou-se sempre aos franceses como um universo a ser descoberto a posteriori, como uma terra onde as utopias, como o Fourierismo e o positivismo, poderiam ser implantadas. Visto que a influência francesa foi grande também no Velho Mundo, o país acabou exportando para as demais nações europeias, reforçando-as, as visões imaginárias que construiu do Brasil.

Tais imagens começaram a ser moldadas em uma época de transição no Velho Continente, quando a mentalidade da Idade Média dava lugar a um novo pensamento, no início da Idade Moderna. Todavia, esse foi um processo lento e parcial, devido à permanência de muitos elementos medievais na visão de mundo dos europeus. Nesse contexto, a América do Sul e, sobretudo, o Brasil surgiram como lugares onde a novidade radical trazida pelo território tropical convivia com imagens e tradições herdadas do ideário medieval.

As novas terras logo passaram a ser vistas como um paraíso, já que, depois de meses de miséria e tormentas nas travessias, o solo virgem apresentava-se como “compensação” aos exploradores europeus. A natureza no Brasil providenciava alimentação e descanso aos viajantes, sombra e água fresca (literalmente), sexo com as nativas após períodos longos de abstinência no mar. O fim do escorbuto parecia um milagre; os acometidos pela doença saravam rapidamente pela ingestão de frutas cítricas. Mas a terra também tinha seu aspecto inóspito, emboscadas e moléstias desconhecidas. Assim, para compreender sua associação com o éden perdido é preciso recorrer ao estudo do imaginário europeu.
Acervo da Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro
Espantados com animais que nunca haviam visto, os europeus relataram a existência de seres fantásticos, como este peixe com tronco humano descrito pelo português Pero de Magalhães Gandavo
O historiador Sérgio Buarque de Holanda, no livro Visão do paraíso, afirma que a percepção que os europeus tinham da América estava ligada à interpretação quase literal que faziam dos textos bíblicos na época dos descobrimentos. Os homens do Velho Mundo acreditavam, então, na existência de uma Idade de Ouro perdida, crença que havia marcado o espírito europeu desde a Antiguidade. O novo território ressurgia como éden reencontrado: “E como, em um e outro caso [bíblico e tradição greco-latina], o paraíso perdido fosse fabricado para responder a desejos e frustrações dos homens, não é de admirar que ele aparecesse, em vez de realidade morta, como um ideal eterno e, naturalmente, uma remota esperança”, afirma Sérgio Buarque.

Exemplo nítido desse imaginário europeu é um fabliau (poema medieval) sobre a terra da Cocanha, que foi estudado pelo medievalista Hilário Franco Jr. Provavelmente oriundo do norte da França, o poema de 188 versos, de meados do século XIII, conta a história de uma visita a uma terra utópica (Cocanha), paradisíaca, onde imperam a abundância, a ociosidade, a juventude e a liberdade.

O estudo do mito da Cocanha ilustra o contexto de privações em que vivia a Europa e seus habitantes na Idade Média. A busca de uma terra utópica, onde fosse possível trabalhar menos e gozar a vida, parecia estar justamente ali, na paisagem verdejante e atraente do Brasil. Um dos muitos exemplos dessa impressão, registrada na literatura dos viajantes, é o relato que o padre capuchinho francês Claude d’Abbeville fez da expedição que tentou colonizar o Maranhão em 1612, intitulado História da missão dos padres capuchinhos na Ilha do Maranhão e terras circunvizinhas: “No inverno, a terra é estéril na Europa, e no Brasil, sempre fecunda: na Europa a terra é horrível no inverno, com a erva morta, as árvores desfolhadas, tudo seco. No Brasil é a verdura permanente, a terra está sempre adornada de belas plantas e de flores diversas e raras”.

A descrição que Abbeville faz do país de fato o aproxima do éden: “Em suma, há no Brasil uma eterna primavera unida ao outono e ao verão. E uma tal suavidade de temperatura que em qualquer época do ano as árvores têm folhas, flores, frutos, os quais dão tal perfume à atmosfera, que os campos serão croceis hallantes floribus hortijuvatur. Vivem os homens longos anos. A própria terra, as águas, os animais e os peixes, o ar e os pássaros, as flores, são diferentes dos de França em virtude do clima temperado da região. Aí não nos sentimos débeis, pesados e sonolentos, como na Europa durante os grandes calores do estio; ao contrário, sempre nos sentimos ágeis, alegres, bem-dispostos. Na Europa, o grande calor tira a vontade de comer, e no Brasil sempre temos bom apetite. E não por falta de víveres, que os há em abundância, mas são tão excelentes e é o ar temperado e tão boa a disposição do corpo que a digestão é fácil e rápida” .
Antiga Pinacoteca, Munique
O país da Cocanha, terra imaginária onde imperam a abundância, a ociosidade, a juventude e a liberdade, foi um dos mitos medievais projetados sobre o Novo Mundo
Somadas as razões reais e imaginárias, o Brasil se torna o paraíso, a grande floresta: é a terra prometida que o europeu “reconhece”, identifica com as descrições bíblicas. O habitante, porém, causa espanto, como demonstra este trecho do livro As singularidades da França Antártica, do frade francês André Thévet, que participou da tentativa frustrada de colonizar o Rio de Janeiro em 1555: “Esta região era e ainda é habitada por estranhíssimos povos selvagens, sem fé, lei, religião e nem civilização alguma, vivendo antes como animais irracionais, assim como os fez a natureza, alimentando-se de raízes, andando sempre nus tanto os homens quanto as mulheres, à espera do dia em que o contato com os cristãos lhes extirpe essa brutalidade, para que eles passem a vestir-se, adotando um procedimento mais civilizado e humano”.

O caráter supostamente bárbaro dos índios também é atestado pelo relato de Claude d’Abbeville: “Deus, na sua infinita bondade, fez dessa região um lugar de delícias. Tantas são que se diriam feitas para atrair o habitante do país ao conhecimento de Deus ou, pelo menos, à admiração da excelência do soberano obreiro: entretanto, não creio que tenha jamais havido nação mais bárbara, mais cruel e desumana do que essa”.

No século das Luzes, essa imagem dos povos do Novo Mundo seria objeto de reflexão para os franceses e europeus: inicialmente demonizado, o selvagem passou a ser, sobretudo sob a pena de Jean-Jacques Rousseau, o “bom selvagem”, o homem livre da civilização que o corrompe. O homem cruel, possuído pelo demônio, transformou-se num ser simpático, afável, receptivo, livre, digno de seu éden natural e da inveja do europeu, tão carente de espaço, de abundância, de calor, de ócio. A floresta virgem e o homem refletiam a necessidade do europeu de fugir de um entorno viciado. E o brasileiro teria herdado do bom selvagem os traços de afabilidade e descontração, além de uma tendência a viver em harmonia com a natureza.

No entanto, as visões preconceituosas, ligadas à selvageria primitiva, também sobreviveram aos séculos: a mestiçagem, por exemplo, foi considerada perniciosa pelo cientificismo que passou a dar o tom das viagens dos europeus a partir do século XVIII. O Brasil, com sua imensa quantidade de florestas, era ambiente ideal para pesquisas e descobertas. Além disso, a corrida do ouro e outras riquezas mantinham-no como destino propício. No século XIX, na época do Segundo Império, o Brasil, de “terra prometida”, passou a ser destino para fortuna fácil. Encarado como jovem nação, também estaria prestes a acolher uma “ação civilizadora” da Europa, mentora política e cultural. A França, mais uma vez, sobressaiu nesse papel.
Acervo da Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro
Desde o Renascimento, os mistérios da Amazônia sempre excitaram a imaginação dos exploradores estrangeiros. Para muitos, a floresta ainda hoje é um reservatório de sonhos
Apesar das mudanças, o Brasil sempre ressurge como um lugar longínquo, berço de muitas fantasias para o estrangeiro. As praias idílicas e o Rio de Janeiro do samba e do calor estão entre os principais destinos turísticos dos europeus que continuam a visitar o país. Além disso, a Amazônia segue fascinando os estrangeiros. Eles a veem como um reduto ameaçado e cheio de mistérios, que devem permanecer intocados. Para muitos, a floresta continua a ser um reservatório de sonhos.

Os mistérios da Amazônia, porém, não são hoje os mesmos do século XVI. Em seu livro O pensamento mestiço, o historiador francês Serge Gruzinski mostra que mesmo essa idealização passa por uma espécie de “atualização através do tempo”: “Desde o Renascimento, os mistérios da grande floresta excitaram todos os imaginários, fossem eles espanhóis, portugueses, franceses, ingleses ou italianos: (...) por último, as ameaças que hoje pairam sobre essa região do globo introduzem uma tensão dramática que a tornam ainda mais atraente. A Amazônia está se transformando num paraíso perdido, se é que já não se transformou”.

E uma vez que a história se faz a partir do real e do imaginário, e que as fronteiras entre ambos nem sempre são nítidas, o papel do Brasil para os europeus, com suas imagens cristalizadas, ainda está atrelado à ideia da terra prometida. Daí o escritor austríaco Stefan Zweig o chamar de “país do futuro”. Destino eleito por aqueles que desejam mudar radicalmente de clima; território adequado para certos investidores e para turismo exótico; lugar perigoso: todos esses aspectos da visão do Brasil na Europa descendem do imaginário construído pelos antigos viajantes, que permanece vivo e continua a determinar o pensamento contemporâneo.

Hilário Franco Jr. explica essa intersecção entre o real e o imaginário em seu livro Cocanha – A história de um país imaginário: “O importante é que toda sociedade é, ao mesmo tempo, produtora e produto de seus imaginários. Logo, a verdadeira história, aquela que considera o homem na sua complexidade e totalidade, encontra-se na articulação entre a realidade vivida externamente e a realidade vivida oniricamente. Uma não existe sem a outra, e ambas constroem, juntas, os comportamentos coletivos, o suceder dos eventos históricos”.

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